TODOS OS RESTOS, A RESTANTE
VIDA
Este texto diz que, não havendo memória de ser humano, mais vale guardar
em memória o resto, todos os restos, a restante vida.
(A Restante Vida, Posfácio de A.
Borges)
I O Mundo e a Restante
Vida
E,
no entanto, parece haver dois mundos – o Mundo e a Restante Vida. Irredutíveis
entre si, inimigos um do outro, temendo-se. […]
Não sabemos ainda hoje em que condições o homem comum
pode aceder ao usufruto e à prática do dom poético. Mas (…) aprendemos a
reconhecer como inerente à condição humana a prática da consciência livre
(…)
Foi uma história – e está sendo ainda – de confrontos
entre irredutíveis, entre o Mundo e a Restante Vida. Sejam quais forem as razões
e os princípios em que cada um se escuda, ambos os mundos perderam de vista a
necessidade vital para cada homem de poder alimentar-se de alegria, e poder
viver com sentido.
Porque neste confronto, e no cômputo final do mundo, a
frustração foi quase sempre a parte que lhe coube em sorte. Ora resignando-se,
aceitando ver a sua vida amputada de vibração, de intensidade e amplitude; ora
revoltando-se, dando consigo a ter de enfrentar um excesso inutilizável de
sentido.
(«Diálogo com Lull», Lisboaleipzig 1, pp. 99;
109-110)
*
II Rota de
exclusão
[...] Tudo segue uma rota de exclusão da pujança. Instalou-se um
processo imparável de exclusão; está de volta o medo, embora difuso e diverso,
de uma exclusão ainda maior. Eu tenho medo que me excluam do texto, o meu
vizinho sei que teme ficar desempregado, a rapariga que me ajudava nas limpezas
temia todos os dias perder o marido, que andava com outra. Eu achava que o texto
era o único necessário, mas ia dizendo que era tudo a mesma coisa, que
eram nomes diferentes para o falcão que sentíamos faltar no punho.
[...]
Só agora viram os escritores que o corpo, a leste e a oeste, no Norte e
no Sul, é impotente, não consegue, não consegue, está mal, sente-se mal,
deprimido, sem alegria e desfalcado por não conseguir fazer o mundo. Só agora
viram (mas onde estiveram, então, até agora?) que é o mundo que faz estes homens
– sem-corpo-de-poder? Como se, perto e a longa distância, o bem querer, o
desejar, um calor de amor, um pouco de sentido, alguns segundos de escuta atenta
produzissem invariavelmente a catástrofe do contrário. Não é uma questão
de boas intenções nem de boas vontades. Basta olhar os factos sem os cobrir com
um véu de esperança, basta ler as histórias que os nossos textos contam. O homem
comum está continuamente a ser excluído e espoliado da pujança. O único facto
que volta a ser novo é que chegou a nossa vez. Ou pensava-se que tínhamos um
estatuto de impunidade? Ou imaginávamos que a razia ia poupar os observadores?
Que o corpo do narrador iria ser poupado? Mas porque é que o poder iria ter mais
consideração por nós do que pelo comum dos corpos mortais? [...]
A transparência e o absoluto não são lugares para o homem. Era preciso
dar-lhe o toque para que se lançasse na grande viagem a que todos aspiravam. O
grande êxodo da liberdade de consciência. Eu sempre soube que a razão não serve
para ver. Esse, o equívoco da nossa aliança que transformou a liberdade de
consciência em conquista, que fez de cada ponto de apoio no território uma
fronteira a delimitar espaços de exploração; cada diferença que encontrava, uma
exclusão. E o mundo tornou-se como a razão o escreveu: veloz, exponencial,
crítico, memória acumulada de despossessão. [...] Em dois séculos, deu ao homem
o maior abanão de que há memória. Fê-lo sair da crença. Mas, com as
extraordinárias resistências que se acumularam nesse confronto, nem a razão sabe
agora o caminho para diante, nem a crença poderá jamais abrir o caminho de
retorno... [...]
... a liberdade de consciência é uma fonte inesgotável de angústia e de
vontade de rapina. Porque as crenças, quase todas elas, participaram na rapina,
à conquista de mais almas, num ódio profundo à liberdade de consciência que,
tê-la, é a única maneira de escolher. A crença não vai desistir de usar o medo e
o gregarismo, nem a razão vai deixar de jogar a cartada do seu peso
político-industrial. E eu própria pergunto a mim mesma – para que serve a
liberdade de consciência sem o dom poético? [...]
... um dia a crença partirá. A razão partirá também. E eu desaparecerei
do vosso corpo. Só o homem ficará finalmente sozinho sobre a Terra. Nenhum de
nós imagina o esplendor que isso é.
(Do texto enviado ao Parlamento Internacional de Escritores, reunido em
Lisboa em Setembro de 1994, com o título «Está de volta o medo». JL-Jornal de
Letras, Artes e Ideias, nº 625, 28 de Setembro de 1994)
*
III E no entanto, eu
escrevo…
Jodoigne, 21 de Abril de 1975.
Oiço Gregoriano e escrevo, em A Restante Vida,
a batalha. Eu sei que aqueles de que gosto vão
perder, já perderam. E, no entanto, ainda não sei o que é perder, o
que perderam, no momento em que a batalha se escreve.
Há um
resto que foi deixado e que, sob a forma do mútuo, se enuncia. Apesar de
eu não saber bem o que nessa palavra
se avizinha.
O
que é perder?
Quem perde, que deixa escrito no campo de
batalha?
Absorta na pergunta, olhava, desatenta, a chama
da vela,
a meu lado.
Já
tantas vezes vi bruxulear a chama de uma vela. Mas, naquele
instante, vi-a diferentemente. Não fui sensível à cor, mas ao abrir e fechar da
chama. Ao seu modo de respirar hesitante e persistente. Como estava escuro,
a chama,
aumentando e diminuindo de intensidade, criava maior ou menor
espaço iluminado. E, nesta coincidência
rara de flutuações, senti a igualdade entre
chama, som e vibração. O mesmo ritmo, a mesma oscilação, a
mesma criação de espaço, a mesma variedade de «tempo», a
mesmíssima combustão.
Vi
que as manifestações sonoras são combustões luminosas.
Os
sons acabam porque se queimam e, ao queimarem-se, tornam a matéria
evanescente.
Os
sons transformam-se em fumo; este, há-de ser
nuvem.
Nuvem e melodia são as duas faces da matéria.
Nada se
esvai; tudo passa de monte em monte, de mão em mão, ouvindo-se.
Como se o reverso da história me chegasse numa dobra, e eu o visse a
entreabrir-se ligeiramente, e já as minhas mãos recebessem só
nuvens.
E,
no entanto, eu escrevo…
As
vidas que, durante a batalha, se vão perder, enquanto chamas vivas, iluminaram
quem, o quê? A mim?
E
que pujança estética sem nome tiveram (ou estão tendo?), esses
homens e mulheres?
Que linha do tempo foi ali quebrada?, mas não
partida, e lhes envolve o ser?
Que nuvem continua transitando? Por que será
que no
horizonte da história se ouvem gemidos, o gotejar contínuo de acções
inacabadas?
(Finita. Diário 2. 2ª ed. Assírio & Alvim,
2005, pp. 21-22; 46-47)