3.16.2012

Llansolianas

TODOS OS RESTOS, A RESTANTE VIDA





Este texto diz que, não havendo memória de ser humano, mais vale guardar em memória o resto, todos os restos, a restante vida.

(A Restante Vida, Posfácio de A. Borges)



I O Mundo e a Restante Vida

E, no entanto, parece haver dois mundos – o Mundo e a Restante Vida. Irredutíveis entre si, inimigos um do outro, temendo-se. […]

Não sabemos ainda hoje em que condições o homem comum pode aceder ao usufruto e à prática do dom poético. Mas (…) aprendemos a reconhecer como inerente à condição humana a prática da consciência livre (…)

Foi uma história – e está sendo ainda – de confrontos entre irredutíveis, entre o Mundo e a Restante Vida. Sejam quais forem as razões e os princípios em que cada um se escuda, ambos os mundos perderam de vista a necessidade vital para cada homem de poder alimentar-se de alegria, e poder viver com sentido.

Porque neste confronto, e no cômputo final do mundo, a frustração foi quase sempre a parte que lhe coube em sorte. Ora resignando-se, aceitando ver a sua vida amputada de vibração, de intensidade e amplitude; ora revoltando-se, dando consigo a ter de enfrentar um excesso inutilizável de sentido.

(«Diálogo com Lull», Lisboaleipzig 1, pp. 99; 109-110)



*

II Rota de exclusão

[...] Tudo segue uma rota de exclusão da pujança. Instalou-se um processo imparável de exclusão; está de volta o medo, embora difuso e diverso, de uma exclusão ainda maior. Eu tenho medo que me excluam do texto, o meu vizinho sei que teme ficar desempregado, a rapariga que me ajudava nas limpezas temia todos os dias perder o marido, que andava com outra. Eu achava que o texto era o único necessário, mas ia dizendo que era tudo a mesma coisa, que eram nomes diferentes para o falcão que sentíamos faltar no punho. [...]

Só agora viram os escritores que o corpo, a leste e a oeste, no Norte e no Sul, é impotente, não consegue, não consegue, está mal, sente-se mal, deprimido, sem alegria e desfalcado por não conseguir fazer o mundo. Só agora viram (mas onde estiveram, então, até agora?) que é o mundo que faz estes homens – sem-corpo-de-poder? Como se, perto e a longa distância, o bem querer, o desejar, um calor de amor, um pouco de sentido, alguns segundos de escuta atenta produzissem invariavelmente a catástrofe do contrário. Não é uma questão de boas intenções nem de boas vontades. Basta olhar os factos sem os cobrir com um véu de esperança, basta ler as histórias que os nossos textos contam. O homem comum está continuamente a ser excluído e espoliado da pujança. O único facto que volta a ser novo é que chegou a nossa vez. Ou pensava-se que tínhamos um estatuto de impunidade? Ou imaginávamos que a razia ia poupar os observadores? Que o corpo do narrador iria ser poupado? Mas porque é que o poder iria ter mais consideração por nós do que pelo comum dos corpos mortais? [...]

A transparência e o absoluto não são lugares para o homem. Era preciso dar-lhe o toque para que se lançasse na grande viagem a que todos aspiravam. O grande êxodo da liberdade de consciência. Eu sempre soube que a razão não serve para ver. Esse, o equívoco da nossa aliança que transformou a liberdade de consciência em conquista, que fez de cada ponto de apoio no território uma fronteira a delimitar espaços de exploração; cada diferença que encontrava, uma exclusão. E o mundo tornou-se como a razão o escreveu: veloz, exponencial, crítico, memória acumulada de despossessão. [...] Em dois séculos, deu ao homem o maior abanão de que há memória. Fê-lo sair da crença. Mas, com as extraordinárias resistências que se acumularam nesse confronto, nem a razão sabe agora o caminho para diante, nem a crença poderá jamais abrir o caminho de retorno... [...]

... a liberdade de consciência é uma fonte inesgotável de angústia e de vontade de rapina. Porque as crenças, quase todas elas, participaram na rapina, à conquista de mais almas, num ódio profundo à liberdade de consciência que, tê-la, é a única maneira de escolher. A crença não vai desistir de usar o medo e o gregarismo, nem a razão vai deixar de jogar a cartada do seu peso político-industrial. E eu própria pergunto a mim mesma – para que serve a liberdade de consciência sem o dom poético? [...]

... um dia a crença partirá. A razão partirá também. E eu desaparecerei do vosso corpo. Só o homem ficará finalmente sozinho sobre a Terra. Nenhum de nós imagina o esplendor que isso é.



(Do texto enviado ao Parlamento Internacional de Escritores, reunido em Lisboa em Setembro de 1994, com o título «Está de volta o medo». JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 625, 28 de Setembro de 1994)



*

III E no entanto, eu escrevo…



Jodoigne, 21 de Abril de 1975.

Oiço Gregoriano e escrevo, em A Restante Vida, a batalha. Eu sei que aqueles de que gosto vão perder, já perderam. E, no entanto, ainda não sei o que é perder, o que perderam, no momento em que a batalha se escreve. Há um resto que foi deixado e que, sob a forma do mútuo, se enuncia. Apesar de eu não saber bem o que nessa palavra se avizinha.

O que é perder?

Quem perde, que deixa escrito no campo de batalha?

Absorta na pergunta, olhava, desatenta, a chama da vela, a meu lado.

Já tantas vezes vi bruxulear a chama de uma vela. Mas, naquele instante, vi-a diferentemente. Não fui sensível à cor, mas ao abrir e fechar da chama. Ao seu modo de respirar hesitante e persistente. Como estava escuro, a chama, aumentando e diminuindo de intensidade, criava maior ou menor espaço iluminado. E, nesta coincidência rara de flutuações, senti a igualdade entre chama, som e vibração. O mesmo ritmo, a mesma oscilação, a mesma criação de espaço, a mesma variedade de «tempo», a mesmíssima combustão.

Vi que as manifestações sonoras são combustões luminosas.

Os sons acabam porque se queimam e, ao queimarem-se, tornam a matéria evanescente.

Os sons transformam-se em fumo; este, há-de ser nuvem.

Nuvem e melodia são as duas faces da matéria. Nada se esvai; tudo passa de monte em monte, de mão em mão, ouvindo-se. Como se o reverso da história me chegasse numa dobra, e eu o visse a entreabrir-se ligeiramente, e já as minhas mãos recebessem só nuvens.

E, no entanto, eu escrevo…

As vidas que, durante a batalha, se vão perder, enquanto chamas vivas, iluminaram quem, o quê? A mim?

E que pujança estética sem nome tiveram (ou estão tendo?), esses homens e mulheres?

Que linha do tempo foi ali quebrada?, mas não partida, e lhes envolve o ser?

Que nuvem continua transitando? Por que será que no horizonte da história se ouvem gemidos, o gotejar contínuo de acções inacabadas?

(Finita. Diário 2. 2ª ed. Assírio & Alvim, 2005, pp. 21-22; 46-47)

11.08.2011

Manifestações na USP, ou "Porque sim, somos imaturos"

“Nas democracias, o não-conformismo é possível e, de fato, não está de modo algum inteiramente ausente; nos sistemas totalitários, só uns poucos e insólitos heróis e mártires podem ser considerados capazes de recusar obediência. Apesar, entretanto, de tal diferença, as sociedades democráticas mostram esmagador grau de conformismo. A razão está no fato de que é preciso haver uma resposta ao anseio de união e, se não houver outro meio melhor, então a união da conformidade no rebanho se torna a predominante. Só se pode compreender a força do medo de ser diferente, do medo de estar que poucos passos fora do rebanho, quando se compreendem as profundidades da necessidade de não ser separado. Ás vezes, esse medo do não-conformismo é racionalizado como temor a perigos reais que podem ameaçar a não-conformista. Mas, na realidade, as pessoas querem conformar-se em grau muito mais alto do que são forçadas a conformar-se, pelo menos nas democracias ocidentais.

Na maioria, o povo nem sequer tem consciência de sua necessidade de conformar-se. Vive sob a ilusão de seguir suas próprias idéias e inclinações, de ser individualista, de ter chegado a suas opiniões como resultado de seus próprios pensamentos — apenas acontecendo que suas idéias são as mesmas da maioria. O consenso de todos serve como prova da correção de “suas” idéias. Havendo ainda necessidade de sentir certa individualidade, essa necessidade é satisfeita com relação a diferenças menores; o mono-grama na pasta ou no suéter, a placa com o nome do caixa do banco, o fato de pertencer ao Partido Democrático contra o Republicano, ou a esta associação em vez de àquela, tornam-se expressão de diferenças individuais. O “slogan” de anúncios de que uma coisa “é diferente” demonstra essa necessidade patética de diferença, quando na realidade quase nenhuma resta. (...)


Se a vida, em seus aspectos meramente biológicos, é um milagre e um segredo, o homem, em seus aspectos humanos, é um segredo insondável para si mesmo — e para seus semelhantes. Nós nos conhecemos, e contudo, mesmo apesar de todos os esforços que possamos fazer, não nos conhecemos. Conhecemos nosso semelhante, e contudo não o conhecemos, porque não somos uma coisa, nem o nosso semelhante é uma coisa. Quanto mais penetramos nas profundezas de nosso ser, ou do ser de outrem, tanto mais nos escapa o alvo do conhecimento. Não podemos, todavia, evitar o desejo de penetrar no segredo da alma do homem, no mais interno núcleo do que “ele” é.

Há um meio, um desesperado meio, de conhecer o segredo: é o do completo poder sobre a outra pessoa; poder que a obrigue a fazer o que quisermos, sentir o que quisermos, pensar o que quisermos; que a transforme numa coisa, nossa coisa, possessão nossa. O grau derradeiro dessa tentativa de conhecer reside nos extremos do sadismo, desejo e capacidade de fazer um ser humano sofrer: torturá-lo, forçá-lo a trair seu segredo em seu sofrimento. Nesta avidez de penetrar no segredo do homem, no seu e, portanto, no nosso próprio, está uma motivação essencial da profundidade e da intensidade da crueldade e da destruição.

De modo muito sucinto, essa idéia foi expressa por Isaac Babel. Cita ele um sujeito, oficial na guerra civil russa, que acabava de espezinhar seu antigo patrão até à morte, como dizendo: “Com um tiro — vou dizer a coisa deste jeito — com um tiro a gente apenas fica livre de um camarada... Com um tiro, nunca se alcança a alma, onde ela está num sujeito, nem como se mostra. Mas eu não me canso e mais de uma vez já pisoteei um inimigo por mais de uma hora. Vocês sabem, eu quero chegar a saber o que a vida realmente é, como é a vida aqui no nosso mundo”. (I. Babel, The Collected Stories, Criterion Book, Nova York, 1955.)

Quando crianças, muitas vezes vemos com toda a clareza esse caminho para o conhecimento. A criança apanha alguma coisa e quebra-a a fim de conhecê-la; ou apanha um animal; cruelmente arranca as asas de uma borboleta a fim de conhecê-la, de forçar seu segredo. A crueldade, em si, é motivada por algo mais profundo: o desejo de conhecer o segredo das coisas e da vida. (...) O sadismo é motivado pelo desejo de conhecer o segredo, e contudo permaneço tão ignorante quanto antes era. Despedacei o outro ser membro a membro, e entretanto tudo o que fiz foi destruí-lo.”


Trechos de A Arte de Amar, de Erich Fromm

11.05.2011

Enade - é nada...

É, vamos absolutamente na contramão do Estado - saravá Ivan Illich! Taí mais um fator para refletirmos, abordarmos e (inevitavelmente), defendermos, quando falamos de desescolarização: de que o processo contínuo e plural de florescimento do conhecimento (eu não gosto da idéia de aprender, apreender, prender, adquirir - conhecimento floresce, mobiliza seres, ações e idéias, é como uma primavera do particular e interessante universo humano; conhecer, segundo sua etimologia, significa "saber junto") acontece no ritmo da pulsação, na ordem dos fatos gregários, cotidianos, escolha de uma bagagem para as jornadas que pretendemos empreender vida afora.

Não é sadio, tampouco intelectual e socialmente honesto, fazer deste processo uma corrida pelo ouro, uma barganha: seja o melhor e leve o prêmio, todo seu esforço será compensado por um ganho, preferencialmente, material.






Já faz algum tempo que desconfio que o maior benefício de se propor e construir uma educação desescolarizada se dê no íntimo de nossas estruturas emocionais (e por isso acredito tanto): de que seres humanos possam atingir suas diferentes maturidades tendo a segurança de que são amados pelo que são, com todas as suas idiossincrasias, que cada particularidade é o que os torna únicos e encantadores, que estar no mundo é uma construção constante de si - construção esta sempre amorosa, por menos compreensível que seja - e que a individualidade não pode ser mensurada, não pode ser colocada à prova. Pode, apenas, como todas as coisas honestas, dignas e reais, ser experimentada,  desfrutada, apreciada. E tais convicções fazem tão parte de meu ser e estar no mundo que não consigo imaginar a criação de meus filhos de outra maneira, assim também me recriando. Nisso pulsa a essência de minha contemporaneidade.

E quanto me surpreendo, externalizando estas impressões da maneira mais simplificada possível, pois só com sentimentos como um faro instintivo de que esta é a direção certa a seguir, sobrevém sentenças (ainda que não ditas) como "Mas a vida não é assim", "É bonito - como o são as utopias", e alguns insinuantes questionamentos como "E o mercado de trabalho? É preciso educar para o mercado de trabalho", "Mas e faculdade?", e a mais capciosa "Como será o futuro dessa criança?".

Senhores, não lhes posso garantir respostas certas, seria uma contradição. Pois que as respostas que a desescolarização suscita nada tem a ver com garantias materiais para a sobrevivência (sobretudo em um sistema tão decadente), mas sobretudo para questionamentos, descobertas. Que se relacionam com um sentido profundo de realização. Que permeiam a sensação de felicidade. Que inevitavelmente colocarão em cheque o status quo e fermentarão transformações sociais. Parece um contra-senso investir em algo que tangencie o imaterial? Pois são escolhas, e tão bom seria que conceitos constitucionalmente consolidados como "a dignidade da pessoa humana", a "livre manifestação do pensamento", a "livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação" fossem verdadeiramente existentes na educação brasileira (é desta que posso falar, por ora) - e se em uma das maiores e melhores instituições de ensino públicas do país temos visto tanto ser feito contra estes princípios, apresentem-me boas razões para bater nessa tecla.

A imagem acima é a página de uma instituição privada de ensino superior, que realiza um concurso de simulado para o Enade, visando garantir boas colocações, as mesmas que servirão como material de publicidade gratuita. Sim, o Estado cria mecanismos de avaliação quantitativa que, por sua vez, subsidiarão estatisticamente empresas do segmento comercial de formação no ensino superior: o Enade é uma estratégia indireta de marketing.

Há muitos e muitos textos falando sobre educação e desescolarização (ainda que não utilizem diretamente este nome), seguem abaixo alguns muito queridos, elucidativos. E uma palestra muito especial de Viviane Mosé. Que consoam, mas cujo significado real pode ser compreendido apenas na prática. Boa leitura - e boas experiências.





RIZOMA E EDUCAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES DE DELEUZE E GUATTARI. Mauro Michel El Khouri – Universidade Federal do Ceará

Ivan Illich - Sociedade sem Escolas

Ivan Illich - O Direito ao Desemprego Criador

Humberto Maturana - Emoções e linguagem na educação e na política

Alfabetização Ecológica: Preparando o terreno

Alfabetização Ecológica: a educação das crianças para um mundo sustentável

5.02.2011

Estados Unidos, Realengo, Adorno, Mutarelli...

Já faz um tempo que ando procrastinando... de uma das listas de discussão das quais participo, quando da tragédia da escola em Realengo e a superexposição midiática, saíram documentos, cartas, protestos, mas dos quais não me manifestei, nem concordando nem discordando. E desde aquela época que ando às voltas com este texto, esperando comentá-lo, fazer uso da parte atual que lhe cabe, esperando a poeira baixar.

Mas a poeira não baixa, sabe? Esta semana então, anda pra lá de suspensa... Se não postar isso agora, não o faço mais, portanto desculpo-me da falta de tratamento visual, esta mesa tão mal posta. Não o farei de todo já, visto que a intenção é partir do texto abaixo, contestá-lo em alguns pontos, esclarecer-se com outros autores e focar: "mas o que é que a educação tem a ver com isso tudo", e tentar chegar na desescolarização, educação não-violenta, educação planetária, temas para postagens próximas. Passear um pouco por Dewey, Maffesoli, por exemplo, e toda contribuição que puder, será bem vinda. Não prometo nada brilhante de minha parte, apenas derramações de interesses, inquietações, amarrando as intersecções, contrapondo as divergências. Apenas - e para muitos, é pura masturbação mental, na qual me exponho.

Aproximo Realengo e E.U.A. também para dizer que não estamos ilesos: não somos neutros, tampouco estamos 'a salvo'. Nossa barbárie se dá em doses homeopáticas, corremos o risco da mitridização - talvez por nossa literata "falta de caráter", encontramo-nos meio que lasseados. Televisivos, macunaímas: vamos brincando com todos os signos, ludibriando malandramente uns, malandramente sendo ludibriados por outros e cuja ingenuidade só se torna possível devido a inanições as mais diversas. Que o povo é bom não tenho dúvida, mas não é santo: do seu (nosso) senso de humor - e quem sabe a religiosidade ou espiritualidade como variações - há de se recolher a lágrima mais doce, e o riso mais amargo.

Quanto aos Estados Unidos, confesso que minha atenção, há algum tempo e desde já, recairá sobre falas de minorias: porque não vi falas mais contundentes sobre o terrorismo estadunidense e o absurdo militar senão de soldados veteranos, militância de parteiras tradicionais no país que é o segundo no ranking mundial de cesareanas (nós somos os primeiros!) e que exportou o modelo hospitalar de atendimento ao parto, organização de cooperativas de produtos orgânicos ao lado do Grain Belt. Entre os envenenados haveremos de encontrar os que se tornaram auto-imunes: transgênese entre transgênicos.

"Educação contra a Barbárie" é um debate entre Theodor Adorno e Helmutt Becker, educador alemão, e foi transmitido pelo rádio em 1968. Segue abaixo o mesmo, e ao final dois links de trabalhos acadêmicos que citam esta referência e outras, situando-a e expandindo suas análises para a pós-modernidade e contemporaneidade: o artigo de Bruno Pucci, "Educação contra a Intolerância" (UNIMEP), e a dissertação de Liber Eugenio Paz, "Considerações sobre Sociedade e Tecnologia a partir da Poética e Linguagem dos Quadrinhos de Lourenço Mutarelli no período de 1988 a 2006" (CEFET-PR). Relembrando que Mutarelli está em cartaz no cinema com Natimorto, no qual inaugura-se como ator.

Aos que tiverem paciência com toda a leitura: obrigada e voltem sempre!




EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE

Adorno – A tese que gostaria de discutir é a de que desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. O problema que se impõe nesta medida é saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização — e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente Impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade.


Becker - Quando formulamos a questão da barbárie de um modo tão amplo, então, é evidente, é muito fácil angariar apoio, porque obviamente todos serão de imediato contrários à barbárie. Mas se quisermos testar como a educação pode interferir nesse fenômeno ou agir profilaticamente para evitá-lo, parece-me necessário caracterizar com mais precisão o que é a barbárie e de onde ela surge. Neste caso precisamos indagar se uma pessoa em todos os sentidos compensada, temperada, esclarecida, livre de agressões e, portanto, não motivada à capacidade da agressão, constitui em si um produto almejável da sociedade.

Adorno — Eu começaria dizendo algo terrivelmente simples: que a tentativa de superar a barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade. A obviedade a que o senhor se referiu deixa de sê-lo quando observamos as concepções educacionais vigentes, sobretudo as existentes na Alemanha, em que são importantes concepções como aquela pela qual as pessoas devam assumir compromissos, ou que tenham que se adaptar ao sistema dominante, ou que devam se orientar conforme valores objetivamente válidos e dogmaticamente impostos. Pela minha visão da situação da educação alemã, o problema da desbarbarização não foi colocado com a nitidez e a gravidade com que pretendo abordá-lo aqui. Isto basta para colocar em discussão uma tal aparente obviedade.

Becker — Talvez por um momento fosse necessário não se restringir à Alemanha e perguntar se este problema não se coloca de um modo semelhante no mundo inteiro. Embora uma determinada forma da pedagogia de orientação idealista seja tipicamente alemã neste contexto, os perigos da barbarização, mesmo que em roupagens diferentes, também se colocam em outros países. Se quisermos combater este fenômeno por meio da educação, deverá ser decisivo remetê-lo a seus fatores psicológicos básicos...

Adorno — Não apenas aos psicológicos, mas também aos objetivos, que se encontram nos próprios sistemas sociais.

Becker — Eu concebo a psicologia também como um fator objetivo.

Adorno — Sim, porém entendo como sendo fatores objetivos neste caso os momentos sociais que, independentemente da alma individual dos homens singulares, geram algo como a barbárie.
Neste momento estou mais inclinado a desenvolver essas questões na situação alemã. Não por pensar que não sejam igualmente agudas em outros lugares, mas porque de qualquer modo na Alemanha aconteceu a mais horrível explosão de barbárie de todos os tempos, e porque, afinal, conhecemos a situação alemã melhor a partir de nossa própria experiência viva.

Becker — Havendo consciência de se tratar de um fenômeno geral, podemos começar a partir do exemplo alemão. E como o senhor afirma com muita procedência, existem muitos motivos para tanto. Na questão "O que é possível á educação?" sempre nos defrontamos com o problema de até que ponto uma vontade consciente introduz fatos na educação que, por sua vez, provocam indiretamente a barbárie.

Adorno — Mas também o contrário. Quando o problema da barbárie é colocado com toda sua urgência e agudeza na educação, e justamente em instituições como a sua, que desempenha um papel-chave na estrutura educacional da Alemanha hoje, então me inclinaria a pensar que o simples fato de a questão da barbárie estar no centro da consciência provocaria por si uma mudança. Por outro lado, que existam elementos de barbárie, momentos repressivos e opressivos no conceito de educação e, precisamente, também no conceito da educação pretensamente culta, isto eu sou o último a negar. Acredito que —-- e isto é Freud puro —- justamente esses momentos repressivos da cultura produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura.

Becker — Por outro lado, poderíamos dizer que se exagerarmos a ênfase à desbarbarização, então contribuímos para evitar a mudança da sociedade. Ajudamos eventualmente também a evitar um desenvolvimento em direção a "novas fronteiras", como se diz na América. Servimos, por assim dizer, à realização do lema "A calma é a obrigação primordial da cidadania"; e penso que o decisivo estaria em determinar o conteúdo preciso da desbarbarização em face de muitas exigências ingênuas de tolerância e de calma. Estou convencido que isto não significa para o senhor um desenvolvimento hostil a mudanças. Mas seria decisivo determinar com precisão o que a desbarbarização deva ser neste contexto.

Adorno — Concordo inteiramente com o senhor quanto a que o que imagino ser a desbarbarização não se encontra no plano de um elogio à moderação, uma restrição das afeições fortes, e nem mesmo nos termos da eliminação da agressão. Neste contexto parece-me permanecer totalmente procedente a proposição de Strindberg: "Como eu poderia amar o bem, se não odiasse o mal".
De resto, o conhecimento psicológico defendido como teoria justamente por Freud, com cujas reflexões acerca dessas questões ambos nos revelamos impressionados, encontra-se em concordância também com a possibilidade de sublimar de tal modo os chamados instintos de agressão, acerca dos quais inclusive ele manifestou concepções bastante diferentes durante sua vida, de maneira que justamente eles conduzam a tendências produtivas. Portanto, creio que na luta contra a barbárie ou em sua eliminação existe um momento de revolta que poderia ele próprio ser designado como bárbaro, se partíssemos de um conceito formal de humanidade. Mas já que todos nós nos encontramos no contexto de culpabilidade do próprio sistema, ninguém estará inteiramente livre de traços de barbárie, e tudo dependerá de orientar esses traços contra o princípio da barbárie, em vez de permitir seu curso em direção à desgraça.

Becker — Gostaria de colocar uma questão muito precisa: recentemente um político afirmou que os distúrbios de rua em Bremen por causa dos aumentos tarifários dos transportes seriam uma comprovação da falência da formação política, pois a juventude se manifestou por meio de formas bárbaras contra uma posição pública, acerca de cuja justeza poderia haver várias visões, mas que não poderia ser respondida mediante o que seriam confessadamente intervenções bárbaras.

Adorno — Considero esta afirmativa citada pelo senhor como sendo uma forma condenável de demagogia. Se existe algo que as manifestações dos secundaristas de Bremen demonstra, então é precisamente a conclusão de que a educação política não foi tão inútil como sempre se afirma; isto é, que essas pessoas não permitiram que lhes fosse retirada a espontaneidade, que não se converteram em obedientes instrumentos da ordem vigente. A forma de que a ameaçadora barbárie se reveste atualmente é a de, em nome da autoridade, em nome de poderes estabelecidos, praticarem-se precisamente atos que anunciam, conforme sua própria configuração, a deformidade, o impulso destrutivo e a essência mutilada da maioria das pessoas.

Becker — Contudo precisamos tentar imaginar a perspectiva em que se situam os jovens. Onde adquirem os critérios para decidir o que é bárbaro? Freqüentemente se distingue hoje em dia entre a violência contra os homens e a violência contra as coisas. Distingue-se entre a violência que é praticada, e aquela que é apenas ameaça: fala-se de ausência de violência em ações em si mesmas proibidas. Por assim dizer, desenvolve-se uma graduação da ausência efetiva e da ausência aparente de violência, e a partir deste padrão a questão da barbárie passa a ser avaliada por muitas pessoas. Se entendo bem, a barbárie parece ter um outro sentido para o senhor. A violência pode ser um sintoma da barbárie, mas não precisa necessariamente sê-lo. Na realidade, ao senhor interessa uma outra coisa, o que, na minha opinião, ainda não ficou claro.

Adorno — Bem, parece ser importante definir a barbárie, por mais que me desagrade. Suspeito que a barbárie existe em toda parte em que há uma regressão à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista portanto a identificação com a erupção da violência física. Por outro lado, em circunstâncias em que a violência conduz inclusive a situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a geração de condições humanas mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser condenada como barbárie.

Becker — O senhor diria, se entendo bem, que, por exemplo, não é barbárie a demonstração de jovens ou adultos baseada em considerações racionais, ainda que rompa os limites da legalidade. Mas que é barbárie, por outro lado, a intervenção exagerada e objetivamente desnecessária da policia numa situação destas.

Adorno — Certamente penso assim. Se examinarmos mais de perto os acontecimentos que ocorrem atualmente na rebelião estudantil, então descobriremos que de modo algum se trata neste caso de erupções primitivas de violência, mas em geral de modos de agir politicamente refletidos. Se neste caso esta reflexão é correta ou equivocada, isto não precisa ser discutido agora. Mas não é verdade que se trata de uma consciência deformada, imediatamente agressiva. Os acontecimentos são entendidos, na pior das hipóteses, como estando a serviço da humanidade. Creio que, quando um time de fora que vence é ofendido e agredido num estádio, ou quando um grupo de presumíveis bons cidadãos agride estudantes ainda que só mediante palavras, podemos apreender de um modo radical, a partir desses exemplos tão atuais, a diferença entre o que é e o que não é barbárie.

Becker — Entretanto, em minha opinião as reflexões por si só não garantem um parâmetro frente à existência da barbárie. Enquanto dirigente governamental, por exemplo, posso me dispor ao uso de armas nucleares em algum lugar da Terra com base em considerações estritamente racionais, e este ato pode ser bárbaro, apesar do procedimento abrangente, controladíssimo, estritamente racionalizado e não subordinado a emoções graças à utilização de computadores. As reflexões e a racionalidade por si não constituem provas contra a barbárie.

Adorno — Mas eu não disse isto. Se me recordo — e sou um pai de família cuidadoso — me referi também em nossa discussão a reflexões sobre fins transparentes e humanos, e não a reflexões em abstrato. Pois, e nisto o senhor está coberto de razão, a reflexão pode servir tanto à dominação cega como ao seu oposto. As reflexões precisam portanto ser transparentes em sua finalidade humana. É necessário acrescentar estes considerandos.

Becker — Chegamos a uma questão muito difícil: como educar jovens para que efectivamente apliquem essas reflexões a objetivos humanos, ou seja, isto é factível para os jovens? Eu diria que pode muito bem ser possível, mas representa um rompimento com um conjunto de idéias que se tornaram muito simpáticas. Por exemplo, uma proposição básica da pedagogia recorrente na Alemanha, a de que a competição entre crianças deve ser prestigiada. Aparentemente aprende-se latim tão bem assim por causa da vontade de saber latim melhor do que o colega na carteira à nossa direita ou à nossa esquerda. A competição entre indivíduos e entre grupos, conscientemente promovida por muitos professores e em muitas escolas, é considerada no mundo inteiro e em sistemas políticos bem diversos como um princípio pedagógico particularmente saudável. Sou inclinado a afirmar — e me interessa saber sua opinião a respeito — que a competição, principalmente quando não balizada em formas muito flexíveis e que acabem rapidamente, representa em si um elemento de educação para a barbárie.

Adorno — Partilho inteiramente do ponto de vista segundo o qual a competição é um princípio no fundo contrário a uma educação humana. De resto, acredito também que um ensino que se realiza em formas humanas de maneira alguma ultima o fortalecimento do instinto de competição. Quando muito é possível educar desta maneira esportistas, mas não pessoas desbarbarizadas. Em minha própria época escolar, lembro que nas chamadas humanidades a competição não desempenhou papel algum. O importante era realizar aquilo que se tinha aprendido; por exemplo refletir acerca das debilidades do que a gente mesmo faz; ou as exigências que colocamos para nós mesmos ou à objetivação daquilo que imaginávamos; trabalhar no sentido de superar representações infantis e infantilismos dos mais diferentes tipos.
Abstraindo brincadeiras que transcorreram paralelamente, em minha própria formação não me lembro de que o chamado impulso agônico tenha desempenhado aquele papel decisivo que lhe é atribuído. Na situação escolar, esta é uma daquelas mitologias que continuam lotando nosso sistema educacional e que necessitam de uma análise científica séria.

Becker — Alegra-me muito o fato de o senhor ter freqüentado uma escola que lhe foi tão agradável, e alegra-me a nossa concordância tão profunda acerca da recusa das idéias exageradas de competitividade. Creio que tanto no seu tempo como hoje a massa dos professores continua considerando a competitividade como um instrumento central da educação e um instrumento para aumentar a eficiência. Eis um aspecto em que pode ser feito algo de fundamental em relação à desbarbarização.

Adorno — Isto é, desacostumar as pessoas de se darem cotoveladas. Cotoveladas constituem sem dúvida uma expressão da barbárie. No sistema educacional inglês — por menos que nos agrade o momento de conformismo que ele encerra, o objetivo de se tornar brilhante, o que de fato não é uma boa máxima, e que no fundo é hostil ao espírito — encontra-se na idéia de fair play momentos de uma consideração segundo a qual a motivação desregrada da competitividade encerra algo de desumano, e nesta medida há muito sentido em se aproveitar do ideal formativo inglês o ceticismo frente ao saudável desejo do sucesso.

Becker — Eu até iria mais além. Creio que erramos em insistir demasiado nesta idéia ainda hoje no esporte. Numa sociedade gradualmente liberada dos esforços físicos, em que a atividade física assume uma importante função lúdica e esportiva na escola que é muito mais importante do que jamais ocorreu na história da humanidade, ela poderia provocar conseqüências anímicas equivocadas por meio da competição. Neste sentido creio que um ponto decisivo consiste também em diminuir o peso das formas muito primitivas e marcadas da competitividade na educação física.

Adorno — Isto levaria a um predomínio do aspecto lúdico no esporte frente ao chamado desempenho máximo. Considero esta uma inflexão particularmente humana inclusive neste âmbito dos exercidos físicos, a qual, segundo penso, parece ser estritamente contrária às concepções vigentes no mundo.

Becker — Isto vale para todas as suas afirmações acerca da competição, pois evidentemente poder-se-ia defender a tese de que é preciso se preparar pela competição na escola para uma sociedade competitiva. Bem ao contrário, penso que o mais importante que a escola precisa fazer é dotar as pessoas de um modo de se relacionar com as coisas. E esta relação com as coisas é perturbada quando a competição é colocada no seu lugar. Nestes termos, creio que uma parte da desbarbarização possa ser alcançada mediante uma transformação da situação escolar numa tematização da relação com as coisas, uma tematização em que o fim da proclamação de valores tem uma função, assim como também a multiplicidade da oferta de coisas, possibilitando ao aluno uma seleção mais ampla e, nesta medida, uma melhor escolha de objetos, em vez da subordinação a objetos determinados preestabelecidos, os inevitáveis cânones educacionais.

Adorno — Talvez eu possa voltar mais uma vez a certas questões fundamentais na tentativa de uma desbarbarização mediante a educação. Freud fundamentou de um modo essencialmente psicológico a tendência à barbárie e, nesta medida, sem dúvida acertou na explicação de uma série de momentos, mostrando, por exemplo, que por intermédio da cultura as pessoas continuamente experimentam fracassos, desenvolvendo sentimentos de culpa subjacentes que acabam se traduzindo em agressão. Tudo isto é muito procedente, tem uma ampla divulgação e poderia ser levado em conta pela educação na medida em que ela finalmente levar a sério as conclusões apontadas por Freud, em vez de substitui-las pela pseudo-profundidade de conhecimentos de terceira mão.
Mas no momento refiro-me a uma outra questão. Penso que, além desses fatores subjetivos, existe uma razão objetiva da barbárie, que designarei bem simplesmente como a da falência da cultura. A cultura, que conforme sua própria natureza promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens. A divisão mais importante é aquela entre trabalho físico e intelectual. Deste modo ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer nas coisas humanas, a consequência disto foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não-cumprimento da situação pacifica que se encontra propriamente no conceito de cultura. Em vez disto, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir.
Bem, na medida em que tais nexos, como o da falência da cultura, a perpetuação socialmente impositiva da barbárie e este mecanismo de deslocamento que há pouco descrevi são levados de um modo abrangente à consciência das pessoas, seguramente não se poderá sem mais nem menos mudar esta situação, porém será possível gerar um clima que é incomparavelmente mais favorável a uma transformação do que o clima vigente ainda hoje na educação alemã. Esta questão central para mim é decisiva; é a isto que me retiro com a função do esclarecimento, e de maneira nenhuma à conversão de todos os homens em seres inofensivos e passivos. Ao contrário: esta passividade inofensiva constitui ela própria, provavelmente apenas urna forma da barbárie, na medida em que está pronta para contemplar o horror e se omitir no momento decisivo.

Becker — Concordo inteiramente. Ainda mais quando eu temia nas suas exposições iniciais que a desbarbarização deveria começar, por assim dizer, com uma diminuição da agressão. O senhor já havia respondido com a citação de Strindberg. Mas penso que precisamos nos proteger de equívocos. Certamente o senhor conhece as propostas um pouco surpreendentes de Konrad Lorenz, que desenvolveu com suas exposições acerca da agressão o ponto de vista de que, se quisermos preservar a paz mundial, será necessário abrir novos campos às agressões dos homens. E nessas considerações cabe, por exemplo, o campo esportivo há pouco descrito pelo senhor ocupando o lugar da guerra a ser evitada. Acredito que — por mais interessantes e estimulantes que sejam as observações de Konrad Lorenz acerca das agressões entre os animais — a conclusão a que se chega nestes termos, ou seja, a recomendação de agressões de alívio, é muito perigosa.

Adorno — Ele conclui assim por razões de darwinismo social. Também a mim ele parece extraordinariamente perigoso, porque implica de uma certa maneira reduzir os homens ao estado de seres naturais.

Becker — Não creio que esta seja a opinião de Lorenz.

Adorno — Não, não é. Mas neste modo de pensar, como também no de Portmann, seguramente existem certas tendências desse tipo. Com a educação contra a barbárie no fundo não pretendo nada além de que o último adolescente do campo se envergonhe quando, por exemplo, agride um colega com rudeza ou se comporta de um modo brutal com uma moça; quero que por meio do sistema educacional as pessoas comecem a ser inteiramente tomadas pela aversão à violência física.

Becker — Quanto à aversão eu seria cuidadoso

Adorno — Então pergunto se não existem situações em que sem violência não é possível. Eu diria que neste caso trata-se de uma sutileza. Mas creio que antes de falarmos sobre as exceções, sobre a dialética existente quando em certas circunstâncias a antibarbárie requer a barbárie, é preciso haver clareza de que até hoje ainda não despertou nas pessoas a vergonha acerca da rudeza existente no principio da cultura. E que somente quando formos exitosos no despertar desta vergonha, de maneira que qualquer pessoa se torne incapaz de tolerar brutalidades dos outros, só então será possível falar do resto.

Becker — Bem, a palavra "vergonha" é muito mais do meu agrado, do que a palavra anterior, "aversão". Existe uma literatura ampla a este respeito que — como é do seu conhecimento — conduz a luta contra a barbárie por meio de uma forma de descrição da barbárie que pode ser apreciada. E na aversão exagerada frente à barbárie pode haver elementos análogos. Nestes termos considero mais procedente a sua afirmação de que é preciso gerar uma vergonha. Além disto eu diria que a educação (e por isto o termo "esclarecimento" talvez ainda precise de esclarecimentos) nessas questões deveria se dar com as crianças ainda bem pequenas. É necessário que determinados desenvolvimentos ocorram num período etário — como diríamos hoje — da pré-escola, onde não se verificam apenas adequações sociais decisivas e definitivas, como sabemos hoje, mas também ocorrem adaptações decisivas das disposições anímicas. E é preciso reconhecer com bastante franqueza que em primeiro lugar sabemos pouco acerca de todo este processo de socialização, e também ainda temos pouco conhecimento cientificamente comprovado acerca de que ações têm quais efeitos nesta idade. No fundo, o importante é deixar as agressões se expressarem nesta idade, mas ao mesmo tempo iniciar a sua elaboração. Mas é isto precisamente que coloca as dificuldades maiores ao educador, deixando assim bem claro que no referente a esse problema a formação de educadores encontra-se engatinhando, se é que chegou a tanto.

Adorno — Corno alguém que pensa psicologicamente, isto parece-me ser quase uma obviedade. Isto deve-se a que a perpetuação da barbárie na educação é mediada essencialmente pelo princípio da autoridade, que se encontra nesta cultura ela própria. A tolerância frente às agressões, colocada com muita razão pelo senhor como pressuposto para que as agressões renunciem a seu caráter bárbaro, pressupõe por sua vez a renúncia ao comportamento autoritário e à formação de um superego rigoroso, estável e ao mesmo tempo exteriorizado. Por isto a dissolução de qualquer tipo de autoridade não esclarecida, principalmente na primeira infância, constitui um dos pressupostos mais importantes para uma desbarbarização. Mas eu seria o último a minimizar essas questões, pois os pais com que temos de lidar são, por sua vez, também produtos desta cultura e são tão bárbaros como o é esta cultura. O direito de punição continua sabidamente a ser, em terras alemãs, um recurso sagrado, de que as pessoas dificilmente abrem mão, tal como a pena de morte e outros dispositivos igualmente bárbaros.

Becker — Se concordamos acerca de como é decisiva a educação na primeira infância, então provavelmente também concordamos em relação a que a autoridade esclarecida, tal como o senhor a formula, não representa uma substituição da autoridade pelo esclarecimento, mas que neste âmbito e justamente na primeira infância precisa haver também manifestações de autoridade.

Adorno — Determinadas manifestações de autoridade, que assumem um outro significado, na medida em que já não são cegas, não se originam do princípio da violência, mas são conscientes, e, sobretudo, que tenham um momento de transparência inclusive para a própria criança; quando os pais "dão uma palmada" na criança porque ela arranca as asas de uma mosca, trata-se de um momento de autoridade que contribui para a desbarbarização.

Becker — Isto está inteiramente correto. Creio que concordamos quanto a que, nessa primeira infância e no sentido da desbarbarização, a criança não pode ser nem submetida autoritariamente à violência, nem submetida à insegurança total pelo fato de não se oferecer a ela nenhuma orientação.

Adorno - Contudo, creio que justamente as crianças que são anêmicas no sentido das concepções vigentes dos adultos e também dos pedagogos, as chamadas plantas de estufa, com as quais foi exitosa já precocemente como que uma sublimação da agressão, serão também como adultos ou como adolescentes aqueles que são relativamente imunes em face das agressões da barbárie. O importante é precisamente isto. Acredito ser importante para a educação que se supere este tabu acerca da diferenciação, da intelectualização, da espiritualidade, que vigora em nome do menino saudável e da menina espontânea, de modo que consigamos diferenciar e tornar tão delicadas as pessoas no processo educacional que elas sintam aquela vergonha acerca de cuja importância havíamos concordado.

Tradução: Wolfgang Leo Maar